terça-feira, 27 de maio de 2008

MEMÓRIA DO POETA CUÍCA DE SANTO AMARO

Josias Pires

"Versos, caro leitor/ É pra quem tem competência / É para quem possui / um pouco de inteligência / para concretizá-los / Com toda fibra e cadência // Versos é pra quem tem / O dom que Deus lhe deu / Aquele dom que veio / do berço quando nasceu / na Bahia tem alguém / que tem dom igual ao meu?" (Cuíca de Santo Amaro)

Som de uma tipografia sob imagens atuais da velha Cidade da Bahia de Todos os Santos. Panorâmica vertical desce lentamente do céu até enquadrar, em plano geral, a praça Cairu. Ouve-se, em duas vozes, o cordel "Ninguém foge ao seu destino - a discussão de Rodolfo com Cuíca". Um cantador lê os trechos escritos por Rodolfo Coelho Cavalcante. A voz que lê os versos de Cuíca de Santo Amaro está em off. Esta é uma das seqüências previstas do documentário de longa metragem "Cuíca de Santo Amaro, Ele, O Tal", dirigido por Josias Pires e Joel de Almeida, contemplado pelo Programa Petrobras Cultural, que começou a ser rodado no último dia 17 de março.

A câmera desloca-se por ruas e praças, ladeiras e becos em busca da memória do trovador popular. Passa pelos mesmos lugares por onde ele costumava circular - Praça Municipal, Elevador Lacerda, Rampa do Mercado Modelo, praça Cairu, Baixa dos Sapateiros, Ladeira do Taboão ... Entra em botecos, barbearias, açougues, e se detém sobre pessoas que conheceram o poeta e/ou a sua obra, pessoas que revelam o que sabem dessa personagem irreverente, divertida, temida. Ajudam a situá-la no seu tempo e a compreendermos o sentido da sua obra e de sua trajetória para os dias de hoje.

A equipe de filmagem passa para as mãos dos depoentes cópias de folhetos escritos e publicados pelo trovador. As pessoas lêem trechos desses livretos escandalosos, absurdos, políticos, moralistas, pornográficos ou reflexivos, tais como "A discussão do feijão com a carne verde", "O fechamento do jogo do bicho", "A Viúva Marreteira", "A tragédia de Periperi", "A mulher que nasceu para jogar bilhar", "Jânio Quadros e as suas" ou "O pau comeu em Alagoas", "A chegada de Hitler no inferno", e "Quem tem inimigo não dorme". Pequenas platéias acompanham as performances dos leitores.

A câmera incursiona também pelo bairro popular Baixa de Quintas, penetra no beco chamado pomposamente de Avenida Garcia, onde Cuíca viveu e onde ainda vive o seu filho Jorge Sampaio Gomes. Este fala da origem dos seus pais, informa que Cuíca nasceu em Salvador, na Mouraria e que foi a mãe, Maria do Carmo, quem nasceu em Santo Amaro da Purificação, onde Cuíca ia sempre namorar e farrear acompanhado do seu violão. Cuíca era um homem do Recôncavo Baiano. Mas se deixou contaminar por uma arte ibérico-sertaneja, a literatura de cordel. Cresceu lendo os grandes cordelistas da sua época, como Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista, Manoel Camilo. Antes de escrever versos vendeu, inclusive, folhetos de cordel do paraibanao João Martins de Athayde, maior editor de cordel da época e grande poeta cordelista.

Percorrendo a cidade e perscrutando a memória do trovador, a câmera vai traçando uma descrição visual dos ambientes - da arquitetura e da paisagem humana da cidade hoje - onde o poeta viveu e atuou a partir da década de 1930. Cidade atravessada de paradoxos: terra de encantos e misérias. Cidade conservadora e irreverente, moralista e cínica, onde a verdade e a lenda se confundem. Sob as imagens da cidade ressoa a poesia desabusada de Cuíca de Santo Amaro e textos escritos sobre ele por Jorge Amado, Dias Gomes, Orígenes Lessa, Walter da Silveira, Glauber Rocha e outros.

No filme falam populares, intelectuais e artistas que viram o poeta atuar e conhecem seus folhetos. Essas vozes nos conduzem a refletir sobre a importância e o papel desse trovador repórter, que escreveu cerca de 1 mil folhetos entre 1930 e 1964. Através de pesquisadores como a professora Edilene Matos, o poeta Carlos Cunha, o jornalista Paolo Marconi, o brasilianista Mark Curran conhecemos um pouco mais da história d'Ele, O Tal Cuíca de Santo Amaro: a prisão, a candidatura a vereador, a paixão por Getúlio Vargas - para quem escreveu 15 diferentes folhetos - e o gosto por escândalos. A literatura de Cuíca funcionou como um jornal do povo, versando sobre a vida e costumes da cidade. Explorava assuntos que seduzem como sexo, corrupção, tragédias, política local e nacional, carestia, sofrimento do povo.

Cuíca se dizia propagandista. Durante um tempo atuou anunciando promoções e liquidações nas portas de lojas da Baixa dos Sapateiros. A atividade de propagandista para ele se confundia com a extorsão jornalística: obtinha informações sigilosas - crimes, escândalos sexuais e políticos - anunciava a publicação da notícia, adiantando alguns detalhes, e esperava para ver a reação dos interessados. Se fosse procurado em tempo hábil, vendia toda a edição para uma só pessoa. Caso contrário, saía pelas ruas mercando os versos. A vendagem era certa. Toda semana um folheto novo circulava na cidade. Temido e odiado, teve que se valer da amizade do rábula Major Cosme de Faria para obter um habeas-corpus preventivo, a fim de fazer as suas "propagandas comerciais" sem ser incomodado pela polícia.

A extorsão jornalística parece ser uma atividade tão antiga quanto a própria profissão de jornalista. No Brasil ela se notabilizou com Assis Chateubriand. Cuíca não negava a chantagem e a extorsão para vender os seus versos. Ao contrário, sua prática era transparente. Muitas vezes ele era contratado diretamente por pessoas prejudicadas por alguma situação desfavorável. Em diversos folhetos, o trovador conta o método utilizado para obter as informações e por quanto elas foram vendidas.

No folheto "O vereador que roubou o gado do Braz", afirma: "Pelos prejudicados/ Eu aqui fui procurado/ Com vinte mil cruzeiros/ Também fui recompensado/ Para escrever estes versos/ Sobre os dois ladrões de gado".

As várias faces de Cuíca: propagandista, repórter, defensor do povo, amigo e inimigo de políticos, chantagista e escritor de aluguel tanto aparecem nas falas dos entrevistados, nos versos escritos por ele e também nas contracapas de alguns folhetos, como esta: "Atenção! Atenção! Este livro é baixo a inteira responsabilidade do vereador, vítima da agressão sofrida às mãos do secretário particular do Senhor Prefeito de Pojuca. O trovador-repórter não tem nada a ver com esta situação. Tenho falado. Matéria paga." Ou "A SAIR - A maior bomba do ano... O Rendevú no Edifício Derby, na ladeira da Barroquinha. Reportagem completa com o nome da proprietária, dos freqüentadores e de suas vítimas. Aguardem". Ou ainda "A SAIR: Por que o Bahia levou o campeonato. Encomendaram o trabalho, levaram o campeonato e não querem pagar a mãe-de-santo. - Essa divulgação será paga pelo interessado da mesma. Aguardem".

A narrativa do filme estrutura-se, sobretudo, a partir dos folhetos de Cuíca. Mas são utilizados também dois folhetos de Rodolfo Coelho Cavalcante: "Cuíca de Santo Amaro, o poeta popular que conheci", escrito logo depois da morte de Cuíca, em cumprimento de um acordo entre os dois (quem morresse primeiro escreveria sobre o outro); e a peleja "Ninguém foge ao seu destino - a discussão de Rodolfo com Cuíca". Os versos de Rodolfo Coelho Cavalcante são lidos por um poeta-cantador escolhido dentre aqueles que atuam como repentistas e cordelistas em Salvador. A voz de Cuíca é a de um ator-narrador.

O documentário vale-se também do uso de material de arquivo - jornais, revistas, fotografias, ilustrações e imagens em movimento, como as cenas do próprio Cuíca na abertura e no final do filme "A Grande Feira" (1961), de Roberto Pires. Muitas capas de folhetos foram ilustradas por Sinézio Alves, que fazia também cartazes utilizados em várias performances do trovador. Algumas dessas ilustrações receberão tratamento de técnicas de animação. Outro elemento presente no documentário é a intervenção ficcional de um ator representando o poeta - com chapéu coco, óculos escuros, terno listrado, propagando e vendendo seus folhetos. Dentre as cenas ficcionais estarão trechos de folhetos e fragmentos da peça "O pagador de promessas", de Dias Gomes. O personagem Dedé Cospe-Rima foi inspirado em Cuíca de Santo Amaro.

Para o escritor Orígenes Lessa Cuíca era um "Macunaima da poesia popular" - logo um símbolo do herói brasileiro, herói sem caráter, possuído pela ética da malandragem. Arquétipo de Exu. Acendia uma vela para deus e outra para o diabo. Jorge Amado, em 1945, imortaliza Cuíca de Santo nas páginas de "Bahia de Todos os Santos" como maior de todos os poetas populares da época. Já em "Pastores da Noite", de 1963, Cuíca é alvo da ironia do escritor. Na ficção, Cuíca recebe dinheiro do personagem-comerciante Pepe Oitocentas Gramas para escrever um folheto contra a invasão das suas terras. Mito, defensor do povo, herói sem caráter. São muitas as faces e contradições deste que é o mais desabusado dos nossos poetas populares.

"Cuíca de Santo Amaro é uma figura mitológica". - Glauber Rocha

"Cuíca de Santo Amaro é autor, editor, chefe de publicidade e livreiro ambulante. Um poeta que se basta e que tem um grande público. Não fica ele nos quinhentos exemplares a que montam as maiores edições dos nossos grandes poetas modernos. Se fizerdes um inquérito no mundo do Mercado Modelo (e adjacências) sobre poeta e poesia o único nome que ouvireis será o de Cuíca de Santo Amaro. Jamais outro qualquer, talvez muito mais ilustre, será pronunciado. Amado pelos seus leitores, Cuíca de Santo Amaro é no mundo do Mercado Modelo uma personalidade importante. Ele elevou perante a população desse mundo trabalhador e pobre o conceito em que eram tidos os poetas. Foi ele, e mais ninguem, quem fez da poesia uma profissão digna, libertando-a, na fímbria do mar da Bahia, daquele conceito antigo que igualava o poeta ao vagabundo. Poesia queria dizer vagabundagem, ameaça de facada. Porque os poetas boêmios, falsos poetas e falsos boêmios, freqüentavam também o mundo do Mercado Modelo nos dias de ontem e deviam parati em todas as barracas. Cuíca de Santo Amaro, sem cabeleira e comprando a dinheiro, repôs o poeta no seu devido lugar. E, escrevendo seus versos sobre acontecimentos de todos os dias, dignificou a poesia. Perdoai, mas foi assim mesmo!" Jorge Amado (1945).

"É enormemente produtivo. Rara é a semana em que não publica um folheto novo ... Tem publicado talvez mais de mil folhetos e alcançou muitos leitores devido a irreverência de seus versos com o seu caráter de imprensa amarela que deu a muitas de suas histórias ... São muitos os panfletos de crítica e de protesto que se publicam por toda a parte. A crise da energia elétrica, por exemplo, inspirou na Bahia um folhetinho de Cuíca de Santo Amaro, o Macunaíma da poesia popular: Por que falta luz na cidade. Este Cuíca de Santo Amaro que se diz sempre "Ele, o tal" não se rege pelos padrões da ética de um Rodolfo, de um João José, de um Manoel Camilo (outros poetas da literatura de cordel). Contador de histórias muitas vezes pornográficas, sempre irreverentes, tem-se visto com freqüência às voltas com a polícia" - Orígenes Lessa

UM FILME PARA CUÍCA DE SANTO AMARO, COMENTÁRIO DE JOSIAS PIRES

Um personagem sobre o qual deveríamos silenciar. É o que pensa algumas fontes potenciais do filme documentário que estamos realizando neste momento. Fontes que se recusam a falar diante da câmara. Constatamos que Cuíca de Santo Amaro continua sendo temido, odiado e amado. E que pessoas "bem pensantes" contemporâneas de Cuíca ainda o tomam como personagem menor, marginal, insignificante. Que sequer vale um filme. Mas o que vale mesmo é que esta não é a voz do povo. O povão adorava Cuíca, divertia-se com as suas graças, piadas e versos ferinos e picantes.

A tentativa de black-out na memória, de escrever a história da cultura baiana sem a presença de Cuíca felizmente não foi compartilhada por Dias Gomes e Jorge Amado. O mais traduzido escritor baiano imortalizou o trovador repórter em sua literatura. Em 1943 publicou no jornal "Diretrizes", e em 1945, no livro "Bahia de Todos os Santos" textos que enaltecem o caráter de herói popular do Cuíca anti-fascista. Depois Jorge faria Cuíca personagem dos romances "A morte e a morte de Quincas Berro D'Água", "Pastores da Noite" e "Tereza Batista Cansada de Guerra". E Dias Gomes revelou o trovador de corpo inteiro na peça "O Pagador de Promessas", que virou o filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes (1962).

Até meados da década de 1950 a imprensa tratava Cuíca como um personagem popular muito presente na vida da cidade, um defensor do povo. Na segunda metade da década é que apareceram reportagens descrevendo os métodos de atuação daquele homem "desabusado", como se autodenominava. Métodos que fizeram d'Ele, O Tal, um poeta que incomodou a todos os poderosos que tinham algo a esconder; ao mesmo tempo que fez a alegria do povo nas praças e ruas da cidade com sua irreverência e destemor. Cuíca foi um modernizador dos costumes. Escancarou os "podres" de uma sociedade hipócrita, que se transformava célere em meio ao turbilhão de novidades que o mundo estava produzindo naquele momento. Fruto do seu tempo, Cuíca defendeu com versos em punho o seu próprio quinhão na guerra diária em que vivia.

É certo que nesta defesa Cuíca virou instrumento de chantagens. Trocou muita informação por dinheiro. Longe dele ter sido o inventor da extorsão jornalística. Mas jamais pousou de vestal. Cuíca cutucava a todos, inclusive os homens da imprensa e seus patrocinadores, e não escondeu de ninguém que cobrava o seu bocado.

Possuidor de uma coragem desassombrada, avisava nas contracapas dos livrinhos que a estória narrada era "Matéria Paga. Tenho dito!". Em vários folhetos explica nos versos os procedimentos usados para fazer o texto, indica as fontes e o valor pago pelos interessados na publicação. Para Cuíca era preciso dar nome aos bois. Ou então que pagassem para que a informação deixasse de circular. Um tipo perigoso. Um poeta picaresco. Macunaímico. Expressão mítica de um herói popular brasileiro.